Você viu a campanha do
Carnaval 2012 de prevenção à AIDS? Se não viu no Facebook, no
site do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, ou nos canais
do Departamento e do Ministério da Saúde no YouTube, você
provavelmente não verá. No último dia 02 de fevereiro, o ministro
da Saúde Alexandre Padilha esteve na Escola de Samba da Rocinha
para lançar a campanha oficial de prevenção à Aids para o carnaval.
Composta
por cartazes, folders, bandanas etc., a campanha trazia uma referência
inédita: num dos cartazes, pessoas se divertem na folia de Momo de
um carnaval que pode ser em Salvador ou Olinda. No
primeiro plano, afastados dos demais foliões, mas parecendo estar num beco, um casal formado por um
homem e uma travesti começa a se abraçar. Na linha do tórax dele e
dos seios dela, uma faixa com a frase “isso rola muito”. Ao lado,
duas borboletas trazem cada uma uma camisinha. Abaixo dos insetos,
outra faixa traz a frase “esperar por isso não rola”. Embaixo desta última frase, sobre um preservativo masculino desenrolado, a
oração “na empolgação rola de tudo. Só não rola sem
camisinha. Tenha sempre a sua”. Mais abaixo, as assinaturas do
Sistema Único de Saúde (SUS), do Ministério da Saúde e do governo
federal do Brasil.
“Nunca antes na história
deste país” uma campanha de carnaval
deu-se ao luxo de priorizar a população de travestis e transexuais.
Mas, de uma forma ou de outra, a pasta da Saúde está sendo coerente
com o discurso sobre essa população, que o ministro defendeu
em discurso na Assembleia Mundial da Saúde, realizada no primeiro
semestre do ano passado, na sede da Organização das Nações
Unidas, em Nova York.
Mas os cartazes
não serão vistos porque dificilmente chegarão a tempo às secretarias
estaduais de Saúde (SES), que deveriam fazer a distribuição. Mas
as SES não os distribuem porque eles não chegam a tempo da logística poder distribui-los aos municípios e estes, às
organizações não governamentais parceiras, segundo o princípio de
descentralização do SUS.
Mas, e o vídeo da
campanha? Antes de responder a esta pergunta, permita-me
descrevê-los. Sim, neste ano foram produzidos dois vídeos. Um deles
é protagonizado por um casal heterossexual (um rapaz e uma moça). O
casal hétero se conhece brincando o Carnaval na mesma cidade que a
travesti. Eles saem da folia e vão a uma praia, deitam-se na areia e
a moça pergunta ao rapaz se ele tem camisinha. Uma voz em off diz
que isso rola muito. Mas, antes mesmo que ela possa ficar
desapontada, surge de um buraco na areia um caranguejo – ou siri –
trazendo uma camisinha a eles. E a voz novamente diz que esperar por
isso não rola, que na empolgação rola de tudo e que por isso é
sempre bom que se tenha uma camisinha para essas ocasiões.
No outro vídeo,
ambientado numa balada, um rapaz vai ao balcão e pede uma bebida à
garçonete, que depois de entregar-lhe o drink, também dá a ele um
bilhete, olhando à direita. Um outro rapaz sorri ao primeiro. Os
dois se aproximam, conversam, sentam-se num sofá e começam a se
abraçar. Até que um deles pergunta se o outro tem camisinha.
Novamente, a voz em off. E, antes que o que perguntou se decepcione
com a negativa, surge uma fadinha trazendo ao casal gay uma
camisinha. De novo, a voz diz que esperar por isso não rola e
que na empolgação rola de tudo.
Os vídeos seriam dirigidos a heterossexuais e gays, respectivamente. Com as peças audiovisuais,
pretendia-se sensibilizar a jovens entre 15 e 24 anos, faixa etária
em que a disseminação do HIV ainda é alta. Seriam porque não serão
vistos. Foram vetados pelo ministro. Uma fonte disse que o
ministro considerou-os abusadinhos demais.
Campanhas de prevenção
de doenças fazem parte das estratégias de comunicação do
Ministério da Saúde com a população brasileira. Tais estratégias
são amplamente discutidas no âmbito das conferências de Saúde,
pois o Art. 196 da Constituição Cidadã de 1988 atribui ao Estado a
responsabilidade pela garantia do direito à saúde de todos, “mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Além do Art. 196, a Carta Magna dispõe sobre a Saúde nos artigos
197, 198, 199 e 200. Regulamentam tais artigos as leis 8.080/90 e 8.142/90,
além de decretos, portarias, normas, pactos etc.
Para elaborar uma
campanha de prevenção, o Departamento de Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DST), Aids e Hepatites Virais do Ministério da
Saúde define, segundo dados epidemiológicos, a população a ser
sensibilizada, que eles nomeiam por “público alvo”. A prioridade
é apresentada ao Grupo de Trabalho (GT) de Comunicação, que tem
participantes do próprio Departamento, da Assessoria de Comunicação
(Ascom) do Ministério da Saúde, da agência de publicidade, do
movimento social e da universidade. Essa participação é
preconizada pelo inciso III do Art. 198 da Constituição.
Por causa de algumas
campanhas consideradas mais polêmicas, até a Ascom da Presidência
da República tem de aprovar as campanhas federais. No caso da Saúde,
só é submetida a campanha depois de aprovada pela Ascom do Ministério. Se a campanha foi lançada e o ministro considerou os vídeos avançadinhos demais, significa que ele lançou a campanha na
Rocinha sem assisti-los?
Por dois anos, eleito
pelo movimento social de luta contra a AIDS no Brasil, fiz parte deste GT. Às vezes percebia que
duas ou três vírgulas do que falávamos eram ouvidas. Noutras
vezes, nem isso. Fiquei bastante satisfeito quando, logo no primeiro
ano de participação, o Departamento voltou atrás na intenção de produzir uma
campanha de carnaval com pessoas vivendo com HIV/AIDS. Meu argumento
era de que sem uma sensibilização anterior, que poderia ser feita pela campanha do Dia Mundial
de Luta contra a AIDS, seríamos ainda mais discriminados. Foi o
recuo do Departamento que me levou a repensar a campanha e a sugerir
que o GT retomasse a discussão para a campanha do Dia Mundial, o que
realmente aconteceu, abrindo espaço para que as pessoas que vivem
com HIV/AIDS pudessem também estar na campanha do carnaval do ano
seguinte.
Paralelamente à
redação desta postagem, uma discussão foi travada nas redes
sociais e em algumas listas de discussão. Um representante dos
jovens gays interpelou o Ministério, que deu a ele a seguinte
resposta: “A campanha de aids está passando por ajustes técnicos,
os filmes estão sendo legendados para proporcionar acessibilidade
para os deficientes visuais. Em breve, a campanha será lançada em
rede nacional de televisão.” Oi??? Filmes legendados para
deficientes visuais???
Em 2005, a campanha do
Dia Mundial de luta contra a AIDS deveria sensibilizar a população
negra. O vídeo custou R$ 15 milhões e não passou nenhuma vez na TV
até hoje. No ano passado, o filminho pífio que o Ministério da
Saúde fez para o mesmo dia 1º de dezembro passou apenas uma única
vez na TV. Não se sabe quanto custou.
Eu vi os vídeos legendados. Portanto, digam que sou chato, que não gosto de nada –
o que não é verdade, pois já elogiei campanhas do governo federal
neste blog –, etc. Mas não subestimem a minha inteligência. Nem a
de ninguém, porque isso é violência institucional a uma das
populações que mais precisam ser sensibilizadas. Isso é um
atentado ao direito humano à informação à saúde.
PS: os comentários
estão abertos, sem moderação. Como sempre estiveram, porque a
expressão ainda é livre neste país.
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