terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Não subestime a inteligência alheia ou cadê a campanha do Carnaval?


Você viu a campanha do Carnaval 2012 de prevenção à AIDS? Se não viu no Facebook, no site do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, ou nos canais do Departamento e do Ministério da Saúde no YouTube, você provavelmente não verá. No último dia 02 de fevereiro, o ministro da Saúde Alexandre Padilha esteve na Escola de Samba da Rocinha para lançar a campanha oficial de prevenção à Aids para o carnaval.

Composta por cartazes, folders, bandanas etc., a campanha trazia uma referência inédita: num dos cartazes, pessoas se divertem na folia de Momo de um carnaval que pode ser em Salvador ou Olinda. No primeiro plano, afastados dos demais foliões, mas parecendo estar num beco, um casal formado por um homem e uma travesti começa a se abraçar. Na linha do tórax dele e dos seios dela, uma faixa com a frase “isso rola muito”. Ao lado, duas borboletas trazem cada uma uma camisinha. Abaixo dos insetos, outra faixa traz a frase “esperar por isso não rola”. Embaixo desta última frase, sobre um preservativo masculino desenrolado, a oração “na empolgação rola de tudo. Só não rola sem camisinha. Tenha sempre a sua”. Mais abaixo, as assinaturas do Sistema Único de Saúde (SUS), do Ministério da Saúde e do governo federal do Brasil.

Nunca antes na história deste país uma campanha de carnaval deu-se ao luxo de priorizar a população de travestis e transexuais. Mas, de uma forma ou de outra, a pasta da Saúde está sendo coerente com o discurso sobre essa população, que o ministro defendeu em discurso na Assembleia Mundial da Saúde, realizada no primeiro semestre do ano passado, na sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York.

Mas os cartazes não serão vistos porque dificilmente chegarão a tempo às secretarias estaduais de Saúde (SES), que deveriam fazer a distribuição. Mas as SES não os distribuem porque eles não chegam a tempo da logística poder distribui-los aos municípios e estes, às organizações não governamentais parceiras, segundo o princípio de descentralização do SUS.

Mas, e o vídeo da campanha? Antes de responder a esta pergunta, permita-me descrevê-los. Sim, neste ano foram produzidos dois vídeos. Um deles é protagonizado por um casal heterossexual (um rapaz e uma moça). O casal hétero se conhece brincando o Carnaval na mesma cidade que a travesti. Eles saem da folia e vão a uma praia, deitam-se na areia e a moça pergunta ao rapaz se ele tem camisinha. Uma voz em off diz que isso rola muito. Mas, antes mesmo que ela possa ficar desapontada, surge de um buraco na areia um caranguejo – ou siri – trazendo uma camisinha a eles. E a voz novamente diz que esperar por isso não rola, que na empolgação rola de tudo e que por isso é sempre bom que se tenha uma camisinha para essas ocasiões.

No outro vídeo, ambientado numa balada, um rapaz vai ao balcão e pede uma bebida à garçonete, que depois de entregar-lhe o drink, também dá a ele um bilhete, olhando à direita. Um outro rapaz sorri ao primeiro. Os dois se aproximam, conversam, sentam-se num sofá e começam a se abraçar. Até que um deles pergunta se o outro tem camisinha. Novamente, a voz em off. E, antes que o que perguntou se decepcione com a negativa, surge uma fadinha trazendo ao casal gay uma camisinha. De novo, a voz diz que esperar por isso não rola e que na empolgação rola de tudo.

Os vídeos seriam dirigidos a heterossexuais e gays, respectivamente. Com as peças audiovisuais, pretendia-se sensibilizar a jovens entre 15 e 24 anos, faixa etária em que a disseminação do HIV ainda é alta. Seriam porque não serão vistos. Foram vetados pelo ministro. Uma fonte disse que o ministro considerou-os abusadinhos demais.

Campanhas de prevenção de doenças fazem parte das estratégias de comunicação do Ministério da Saúde com a população brasileira. Tais estratégias são amplamente discutidas no âmbito das conferências de Saúde, pois o Art. 196 da Constituição Cidadã de 1988 atribui ao Estado a responsabilidade pela garantia do direito à saúde de todos, “mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Além do Art. 196, a Carta Magna dispõe sobre a Saúde nos artigos 197, 198, 199 e 200. Regulamentam tais artigos as leis 8.080/90 e 8.142/90, além de decretos, portarias, normas, pactos etc.

Para elaborar uma campanha de prevenção, o Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde define, segundo dados epidemiológicos, a população a ser sensibilizada, que eles nomeiam por “público alvo”. A prioridade é apresentada ao Grupo de Trabalho (GT) de Comunicação, que tem participantes do próprio Departamento, da Assessoria de Comunicação (Ascom) do Ministério da Saúde, da agência de publicidade, do movimento social e da universidade. Essa participação é preconizada pelo inciso III do Art. 198 da Constituição.

Por causa de algumas campanhas consideradas mais polêmicas, até a Ascom da Presidência da República tem de aprovar as campanhas federais. No caso da Saúde, só é submetida a campanha depois de aprovada pela Ascom do Ministério. Se a campanha foi lançada e o ministro considerou os vídeos avançadinhos demais, significa que ele lançou a campanha na Rocinha sem assisti-los?

Por dois anos, eleito pelo movimento social de luta contra a AIDS no Brasil, fiz parte deste GT. Às vezes percebia que duas ou três vírgulas do que falávamos eram ouvidas. Noutras vezes, nem isso. Fiquei bastante satisfeito quando, logo no primeiro ano de participação, o Departamento voltou atrás na intenção de produzir uma campanha de carnaval com pessoas vivendo com HIV/AIDS. Meu argumento era de que sem uma sensibilização anterior, que poderia ser feita pela campanha do Dia Mundial de Luta contra a AIDS, seríamos ainda mais discriminados. Foi o recuo do Departamento que me levou a repensar a campanha e a sugerir que o GT retomasse a discussão para a campanha do Dia Mundial, o que realmente aconteceu, abrindo espaço para que as pessoas que vivem com HIV/AIDS pudessem também estar na campanha do carnaval do ano seguinte.

Paralelamente à redação desta postagem, uma discussão foi travada nas redes sociais e em algumas listas de discussão. Um representante dos jovens gays interpelou o Ministério, que deu a ele a seguinte resposta: “A campanha de aids está passando por ajustes técnicos, os filmes estão sendo legendados para proporcionar acessibilidade para os deficientes visuais. Em breve, a campanha será lançada em rede nacional de televisão.” Oi??? Filmes legendados para deficientes visuais???

Em 2005, a campanha do Dia Mundial de luta contra a AIDS deveria sensibilizar a população negra. O vídeo custou R$ 15 milhões e não passou nenhuma vez na TV até hoje. No ano passado, o filminho pífio que o Ministério da Saúde fez para o mesmo dia 1º de dezembro passou apenas uma única vez na TV. Não se sabe quanto custou.

Eu vi os vídeos legendados. Portanto, digam que sou chato, que não gosto de nada – o que não é verdade, pois já elogiei campanhas do governo federal neste blog –, etc. Mas não subestimem a minha inteligência. Nem a de ninguém, porque isso é violência institucional a uma das populações que mais precisam ser sensibilizadas. Isso é um atentado ao direito humano à informação à saúde.

PS: os comentários estão abertos, sem moderação. Como sempre estiveram, porque a expressão ainda é livre neste país.

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