terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Ex-presidente do CNS alerta sobre golpe contido na Carta de Brasília

O ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Francisco Batista Júnior, divulgou hoje um manifesto alertando para o golpe contido na Carta de Brasília (divulgada aqui, no post abaixo).
Segundo Batista Júnior, a carta vai contra muitas das propostas aprovadas e é favorável a propostas derrotadas na 14ª Conferência Nacional de Saúde, que ele nomeia como a mais melancólica de todas.
Com os delegados voltando às suas bases, começam a pipocar propostas de ações judiciais contra a aprovação da carta, que teria ferido o regimento e regulamento da Conferência.
Em respeito ao direito do contraditório, premissa básica do jornalismo, divulgo abaixo o manifesto do ex-presidente do CNS, na íntegra.


A vergonhosa e melancólica 14ª Conferência Nacional de Saúde
por Francisco Batista Júnior (*)

Desde a 13ª Conferência Nacional de Saúde em 2007, a maior e mais democrática Conferência realizada pós Constituição Federal, - que transcorreu sob a absoluta normalidade e que começou e terminou sob aplausos, - que determinados atores passaram a defender alguma “outra coisa” além do Relatório Final que mostrasse não somente o embate entre propostas vencedoras e derrotadas, mas que contemplasse outras “questões importantes”. Isso aconteceu em consequência da estrondosa derrota da proposta de Fundação Estatal de direito privado, o que acabou expondo o governo sobremaneira.
De lá para cá isso passou a ser “costurado” intramuros, ao mesmo tempo em que se deflagrou uma desonesta campanha contra a referida Conferência, esquecendo deliberadamente que dentre outras inúmeras coisas, foi a primeira que realizou, por exemplo, o mais aprofundado debate sobre saúde e qualidade de vida, aliás o seu tema central. A ideia era esconder as grandes polêmicas e os grandes dissensos, jogando-os para “debaixo do tapete”. O plano era não passar a ideia de vencedores e vencidos e de um grande consenso entre todos os participantes, o que, convenhamos, é absolutamente impossível na atual conjuntura e na correlação de forças que enfrentamos.
A “carta de Brasília” foi o instrumento pensado. O tiro saiu pela culatra na 14ª Conferência Nacional de Saúde que acabou de acontecer em Brasília, apesar de não ter havido qualquer articulação contra a dita cuja, pela absoluta falta de tempo e por desconhecimento do seu teor. A dita “carta”, construída durante a Conferência a partir de sucessivas reuniões a portas fechadas com entidades, instituições e movimentos, que foram um a um contemplados de alguma forma nas suas reivindicações, feriu o regulamento da Conferência, foi imposta ao Plenário que não a queria, da forma mais autoritária que já vi na minha militância; trata-se na verdade de um relatório paralelo, uma verdadeira tese que deixa o relatório final e as diferenças em segundo plano e principalmente, não faz qualquer referência às Organizações Sociais (OS), Organizaçõpes da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), Fundações, Empresas e outros “parceiros” privados, enquanto GERENTES dos serviços do SUS.
A questão crucial da “carta” não é o seu conteúdo que contempla de alguma forma quase tudo que reivindicamos para o Sistema Único de Saúde. Mas ao mesmo tempo, também é (de conteúdo), e isso é o principal e essencial para nós, uma vez que se transforma num relatório paralelo e deixa “brechas” para que principalmente, se continue aprofundando o processo de privataria do SUS.
Qualquer um desses instrumentos de GERÊNCIA de serviços acontece ou pode acontecer com GESTÃO estatal e SUS 100% público, sem privatização da GESTÃO, sem dupla porta e tudo o mais que está na “carta”. Mas a GERÊNCIA, de acordo com a “carta”, não está proibida explicitamente de ser exercida pelas OS, OSCIP e todos os demais “parceiros” tão ardorosamente defendidos por alguns/muitos, como novos “paradigmas” do SUS.
Além disso, outras questões colocadas na “carta”, como a taxação de movimentação financeira, que EU defendo mas que foi derrotada na Conferência, estão lá contempladas. Além de tudo isso, não foi permitido de jeito nenhum questão de ordem ou qualquer possibilidade de defesa a favor ou contra o texto que só foi lido na hora da apresentação, muito menos que outros atores da Conferência, como nós do movimento, pudessem apresentar um texto alternativo que até elaboramos quando tomamos conhecimento do que estava em curso, mas que teve autoritariamente cerceada qualquer possibilidade de ser apresentado, depois que a Coordenação da Conferência resolveu, mesmo contra uma manifestação majoritária do Plenário, apresentar o texto “oficial”. O texto que elaboramos era, sim, uma Carta Política e não um novo e paralelo relatório.
Por tudo isso, o que aconteceu na 14ª Conferência Nacional de Saúde foi muito grave. É um grave precedente de método. É um grave precedente de conteúdo. É um precedente perigoso de possibilidade não somente de esvaziamento, mas também de burla ao relatório Final da Conferência, que é o legítimo e democrático produto dos debates. De acordo com o teor da “carta”, qualquer gestor pode continuar tranquilamente praticando a privataria da GERÊNCIA dos serviços do SUS. A “carta” é omissa sobre isso, ao contrário do relatório. Sabemos bem que existem gestores e gestores. Alguns, entenderão a “carta” como o “instrumento democrático” que lhes autoriza a continuar aprofundando a privataria com OS, OSCIP, fundações e congêneres.
A 13ª entrou na história como a que teve a maior participação das últimas Conferências de Saúde, a mais democrática e transparente, a mais organizada; contou com a participação do Presidente Lula na sua abertura, que começou e acabou sob aplausos e foi encerrada com tod@s @s delegad@s emocionad@s cantando o hino nacional. A 14ª começou sob protestos, não teve a presença da Presidenta Dilma, teve gravíssimos problemas na abertura que foi irresponsavelmente transformada num palanque político, na votação do Regulamento, nos grupos de trabalho, uma Plenária Final sem que se disponibilizasse imediatamente os relatórios consolidados, teve o golpe final da “carta”, e acabou sem que o Ministro da Saúde conseguisse fazer o discurso final em função das vaias e protestos.
Aliás, o hino nacional foi colocado desesperadamente em todo o volume para tentar abafar as vaias e protestos que insistiam em não silenciar. Já estão em curso várias denúncias sobre o que aconteceu e possíveis ações judiciais contra a dita “carta”. Nunca antes na história desse país se viu coisa igual. Lamentável!
Por tudo isso, as nossas manifestações são absolutamente fundamentais sob pena de colocar em risco tudo o que penosamente construímos como experiência de democracia participativa no SUS.

* Francisco Batista Júnior é ex-presidente Conselho Nacional de Saúde

Nenhum comentário: